Título: Ferrugem
Autor: Marcelo Moutinho
Primeira publicação: 2017
Modalidade: Ficção
Minha Edição: Editora Record
“[…] embora diferentes, algumas coisas continuam.”
O carioca Marcelo Moutinho, para além da já extensa carreira como escritor, também foi colaborador em diversos suplementos culturais do país e curador de importantes eventos em prol da leitura. Autor principalmente dedicado às formas literárias breves, ele traz como marca de sua produção o enfoque no cenário urbano, sempre explorado de maneira não convencional. Seguindo tal perspectiva, sua coletânea Ferrugem reúne treze contos que dão luz a figuras ordinárias da cidade do Rio de Janeiro em conflito com a passagem do tempo, unindo humor, encantamento e melancolia.
Ao tirar potência e beleza do cotidiano comum, as narrativas presentes no livro muito têm em comum com o gênero crônica, oferecendo um olhar agudo ao aparentemente trivial. Ademais, o autor ultrapassa a inusitada descrição de flagrantes da cidade maravilhosa ao propiciar densidade emocional e certo aprofundamento psicológico a alguns personagens, ainda que suas tramas sejam bem definidas em concisão. O exercício ficcional resulta em leveza de enredo e simplicidade de linguagem, sem excluir o requinte estrutural e a lapidação de diálogos. A sobriedade no trato da profusão de vozes narrativas e o jogo com as expectativas se fazem memoráveis ao leitor, que vai construindo aos poucos os sentidos guardados nas entrelinhas do texto.
A feição local é traçada principalmente através da menção a lugares específicos ao Rio, retratados em tom quase nostálgico. A espacialização contemporânea oportuna o registro das modificações ocorridas na cidade, como o Elevado da Perimetral, célebre viaduto que não existe mais, servindo de cenário em uma passagem de “Dezembros”, conto que é chave para a essência do compêndio ao valer-se das transformações na relação de um jovem com seu avô, que se orgulhava de trabalhar na Rádio Nacional. As referências musicais, inclusive, completam o interessante caldeirão de Moutinho, que não esconde aqui a influência que recebeu do nosso cancioneiro popular: o triste “As praias desertas”, que acompanha uma mulher presa à ilusão de um amor do passado, recebe o título da canção de Tom Jobim regravada por algumas das maiores vozes brasileiras, entre elas Maysa, Elizeth Cardoso e Maria Bethânia, assim como o divertido “Rei” retoma os sucessos da carreira de Roberto Carlos ao centrar-se em um velho cover do cantor que decide bancar um show próprio para provar seu talento ao público da boate de strip-tease em que trabalha há anos, enfrentando a concorrência com o moderno repertório oferecido pela nova gerência do inferninho, e o conto-coração da obra, “Três apitos”, recria o samba homônimo de Noel Rosa (mais conhecido pela marcante interpretação de Aracy de Almeida), substituindo o ambiente da fábrica de tecidos por um supermercado, com os sinais sonoros tomando outra dimensão: a de avisar a protagonista diagnosticada com HIV os horários de sua medicação. Correndo por fora, “Something” alude à famosa balada dos Beatles para embalar as fases de um relacionamento amoroso.
As conexões humanas tomam destaque em algumas narrativas, como em “Jantar a dois”, que retrata a decadência de um casal de meia idade através de não ditos à mesa de um restaurante, e “362”, que mostra uma cobradora de ônibus tentando ajudar um amigo a se aproximar de outra passageira por quem ele nutre um amor platônico. Outros temas ainda se fazem caros ao livro, como o fanatismo religioso, a descoberta sexual (tratada sem firulas) e a ebulição do futebol, mas a essência criativa dos contos parece estar mesmo em consonância com a corrosão temporal que dá nome à coletânea. Até mesmo a incidência do fantástico em “Caiu uma estrela na minha sala” projeta uma possível alegoria à fugacidade ligada a celebridades televisivas. O tempo aqui é apresentado não só como aquele que apodrece, que leva à queda, mas também o que remodela e fortifica, que traz superação.
Com histórias que, de tão poéticas e impactantes, se tornam inesquecíveis, Ferrugem discute a permanência ante a inevitável velocidade do tempo e a importância das ranhuras na trajetória de qualquer pessoa. Marcelo Moutinho surpreende ao extrair do seu desembaraço ficcional grande carga de sofisticação e lirismo, sabendo deixar claro que, embora sofram diversas mudanças, algumas coisas irão inevitavelmente se conservar ou se repetir de outras maneiras.
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Referências Utilizadas:
MOUTINHO, M. Ferrugem. Rio de Janeiro: Record, 2017.
ISBN: 9788501108227
Jauch
/ 18 de maio de 2017Parece muito interessante! Ferrugem… Dá mesmo a sensação que trata do passar do tempo. Vou deixar aqui como referência, para poder ler, no futuro. Obrigado pela indicação!
Cantinho de Tudo ❤
/ 19 de maio de 2017Adorei o post!