Título: Neblina
Autor: Adalgisa Nery
Primeira publicação: 1972
Modalidade: Ficção
Minha Edição: Editora Record
“Tudo era mudo e nessa mudez recebi o mistério dos grandes elementos da vida e da morte.”
No início da década de 1970, Adalgisa Nery amargava o fim de sua prolífica contribuição com o jornal Última Hora e a cassação de seu cargo público pelo golpe militar. Em tais circunstâncias, ela resolveu dedicar seu segundo romance, Neblina, a Flavio Cavalcanti, jornalista e apresentador de TV que a acolheu quando estava desamparada e sem recursos financeiros. O oferecimento ao comunicador conhecido como delator da Ditadura muito prejudicou a receptividade do livro à ocasião de seu lançamento, dificultando sua reedição por vários anos. A enigmática narrativa marca a maturidade artística da carioca e apresenta a sensível tradução de uma época marcada pelo silenciamento e pela desesperança.
A obra acompanha os pensamentos e impressões de uma narradora não nomeada. Ela aparentemente sofreu complicações durante uma cirurgia, o que a possibilitou uma projeção transcendental, entrando em contato com uma “memória universal” que não a pertencia, mas que a permitia vislumbrar cenas de seu passado conectadas ao seu presente e ao futuro. Neste sentido, à semelhança de um lampejo epifânico, a protagonista presencia o respectivo cortejo fúnebre e até sente o princípio da decomposição de seu corpo sem vida, além de perceber a face cruel e egoísta dos seus familiares. A visão envolta em sonho ainda vincula a descoberta de que o tal conjunto de lembranças teria assumido a forma de uma segunda cabeça em seu ombro. Todavia, ela enxerga tudo de forma embaçada e imprecisa, como em meio a uma densa neblina.
Não sabemos se tal descrição inicial trata-se de uma experiência de quase morte ou da ampliação dos sentimentos que precederam o último suspiro da personagem. Entretanto, logo depois, encontramos esta acamada e emudecida, podendo caracterizar tanto um despertar para a realidade, como um retorno aos dias que suscitaram a sua transição de consciência. Em estado de profunda apatia e fragilidade, ela revela sua decisão de não interagir ou se comunicar com as pessoas ao seu redor, a ponto de todos acharem que ela havia perdido a capacidade de falar. Demonstrando total desprezo pelo marido, pela irmã mais nova, o pai e a mãe (nenhum deles identificado), a narradora permanece intencionalmente imóvel, necessitando de cuidados especiais. A invalidez voluntária e a atitude de voltar-se para dentro manifesta um comprometimento libertário, como que em resistência a um ambiente hostil e caótico. A família então se aproveita de sua condição passiva e aluga o aposento em que se encontrava para um casal, isolando-a do convívio da casa no quarto dos fundos. Contudo, a nova inquilina (também sem nome) passa a visitá-la constantemente, gerando nela conflituosas reações internas e externas.
A proposital mudez da figura principal do livro (semelhante à sua dificuldade de enxergar na abertura do romance) ao mesmo tempo em que é uma clara referência ao entrave de expressão decorrente do afastamento da autora – e de tantos outros – de suas atividades artísticas e políticas num período deveras conturbado de nossa história, também é um artifício preciso para ela discutir o vazio existencial e os irreparáveis defeitos da própria humanidade. O interessante mergulho que a personagem faz em si mesma, através de suas frequentes digressões, ainda traça embates psicológicos muito próximos a um transtorno bipolar ou uma depressão clínica. Apenas ao leitor é concedido o vínculo com sua personalidade melancólica e a interpretação de seu discurso muitas vezes confuso e incongruente, pautado em reflexões bastante particulares.
A condução da trama se dá de forma lenta, mas não acarreta uma leitura enfadonha. Adalgisa Nery demonstra habilidade em utilizar a linguagem como um instrumento de construção e desconstrução de sentidos. Sua prosa ardente e intimista merece ser lida e relida, com a devida atenção à dimensão estética de um trabalho voltado à análise do ser e estar no mundo.
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Referências Utilizadas:
NERY, A. Neblina. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.
ISBN: 9788503012676
Thomas
/ 3 de julho de 2016Parabéns, foi a melhor resenha sobre ‘Neblina’ que já li.
Valnikson Viana
/ 24 de julho de 2016Obrigado mesmo, Thomas! Fico muito feliz que tenha gostado do texto! Espero que continue acompanhando o blog. Grande abraço!
histericaspontocom
/ 11 de julho de 2016A sua sensibilidade de compreender além dos paragrafos me encantou!
Adorei a resenha!
Abraços <3
Valnikson Viana
/ 24 de julho de 2016Amanda, fico muito contente que tenha gostado do que escrevi. Muito obrigado pelo carinho e pela visita. Espero que você continue acompanhando o blog. Abração! :)